TERRORISMO E OPORTUNISMO DE DIREITA: A resposta inadequada da sociedade francesa às origens do atentado de Paris.

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Foto: Atentado contra centro de culto islâmico em Paris.

Autor: Sandro Ari Andrade de Miranda, advogado, mestre em ciências sociais.

 “A fonte psicológica mais importante do terrorismo é sempre o sentimento de vingança que busca uma válvula de escape”. (Leon Trotsky)

 

A luta política da esquerda sempre foi pautada por valores superiores, coletivos e transgeracionais, como a defesa dos direitos fundamentais, a proteção do trabalho, a defesa da natureza, a solidariedade internacional, a democracia absoluta (político-social), entre outros.

É exatamente por isso que a militância de esquerda se organiza em partidos, em sindicatos, em associações e outras entidades que permitam a construção de uma agenda política capaz de transformar a sociedade e garantir uma vida com mais justiça, equidade e qualidade.

Portanto, a verdadeira luta dos militantes de esquerda sempre foi contrária ao terrorismo, dado o caráter individualista deste tipo de ação, e pela capacidade de desvirtuar as pautas coletivas.

León Trotsky, num brilhante ensaio publicado em novembro 1911 no mensário austríaco Der Kampf, intitulado “Por que os Marxistas de Opõem ao Terrorismo” afirmou:

Para nós o terror individual é inadmissível precisamente porque apequena o papel das massas em sua própria consciência, as faz aceitar sua impotência e volta seus olhos e esperanças para o grande vingador e libertador que algum dia virá cumprir sua missão”.

E é exatamente isto que ocorre com as ações terroristas: apequenam a pauta política, por mais justa que seja; emparedam os movimentos contra hegemônicos; e abrem espaço para todo o tipo de oportunismo da direita. Assim foi em 11 de setembro, agora está acontecendo o mesmo na França.

No momento em que a esquerda começa a se afirmar em toda a Europa, reforçando a importância da luta democrática, com a ascensão de Alexis Tsipras, do Syriza, ao comando do Governo Grego, e com o favoritismo do “Podemos” na Espanha, um atentado contra os cartunistas da revista francesa Charlie Hebdo criou um palco para os apagados e fracassados conservadores europeus, e para o renascimento da “islamofobia”.

As experiências de 11 de setembro e do nazismo mostraram como é ruim abrir uma janela de oportunidades para a ultradireita, e esse risco pode ser a maior consequência dos atentados de Paris.

Por outro lado, mesmo entendendo que não há nenhuma justificativa para qualquer tipo de ato terrorista, nem sob o ponto de vista político, muito menos sob a ótica humana, é necessário compreender o contexto dos fatos ocorridos da França, e buscar afastar interpretações oportunistas e racistas que explodem em toda a mídia, inclusive na mídia oligopolista brasileira.

A França é hoje a maior comunidade islâmica da Europa Ocidental, com mais de 10% da população professando a religião, o que corresponde a cerca de 7 milhões de pessoas. Apesar desse massivo crescimento, os muçulmanos são objeto de exclusão social, de racismo, xenofobia e da perseguição policial do estado.

A maior parte da população islâmica é formada por descendentes de imigrantes de antigas colônias francesas, como Argélia, Costa do Marfim, Tunísia, e vivem nas periferias da grande Paris e das grandes cidades do sul da França.

Mesmo representando uma parcela significativa da população, cada vez mais os muçulmanos tem sido alvo de atentados contra as suas crenças e a sua cultura pelo crescente ultradireitismo europeu, como a Frente Nacional Francesa, dirigida por Jean Marie Le Pen.

Como acontece na Alemanha, na Áustria e outros países da Europa, o impacto econômico da crise do euro fez com que os partidos de direta buscassem inimigos. Como não podiam atacar a sua base no mercado financeiro, preferiram eleger como primeiro alvo os imigrantes de países muçulmanos.

Além disso, existem resquícios das chamadas “campanhas contra o terror”, derivados dos atentados de 11 de setembro e do atentado ao metrô de Londres, que reforçaram a “islamofobia” em todo o território da União Europeia, deixando raízes que ainda não foram extirpadas.

A situação é tão grave que o astro do futebol francês, Karim Benzema, de origem argelina, foi alvo de polêmica por se negar a cantar o hino francês durante a Copa do Mundo de 2014. De acordo com o jogador, trata-se de um protesto contra a moderna leitura da expressãosangue impuro” que consta nos versos da Marselhesa [“Às armas, cidadãos / formai vossos batalhões / marchemos, marchemos! / Que um sangue impuro / banhe o nosso solo“].

O verso foi utilizado para exaltar o orgulho francês em 1792 contra a ocupação dos exércitos estrangeiros. Hoje, a direita francesa utiliza o verso para atacar os imigrantes e seus filhos, e para fomentar a xenofobia. Como exemplo, apesar de Benzema ter conduzido a seleção francesa com brilhantismo durante a Copa, dada a ausência de Frank Ribery (também muçulmano), o jogador tem sido vítimas constantes do grupo liderado por Le Pen, que pede a sua exclusão da seleção.

Não esqueçamos dos conflitos dos subúrbios de Paris em 2005, que tiveram origem na perseguição policial a três jovens descendentes de Africanos, dos quais dois morreram eletrocutados nas cercas de proteção de um prédio abandonado durante a fuga.

Na época o jornal Britânico The Guardian afirmou que os distúrbios colocaram abaixo a cortina que separa a parte rica das cidades e os subúrbios, que abrigam a maioria dos imigrados na África, “e que nunca puderam se integrar à sociedade francesa, e se transformaram em uma subclasse acostumada com discriminação e falta de esperanças“. As denúncias de racismo e discriminação nestas regiões são constantes, e gozam de total invisibilidade nas mídias francesa, da Europa, e dos EUA.

No caso do Charles Hebdo, não ingressando na discussão sobre liberdade de expressão, a cultura muçulmana tem sido objeto de constantes ataques das charges da referida revista, sempre com a alusão a condutas terroristas. Logo, a escolha do alvo do atentado não ocorreu por acaso.

Portanto, é neste contexto de conflito, sobre um barril de pólvora, que aconteceu o atentado de Paris. Resta saber qual será a resposta do governo e da sociedade daquele país, se abrirá os olhos contra a discriminação social, e promoverá a integração das camadas excluídas, ou se manterá a doutrina de ódio. Por enquanto, com a queima de mesquitas e a propagação do reforço à discriminação contra os muçulmanos, a resposta tem sido a pior possível.

4 comentários

  1. Muito boa sua reflexão. Nesse sentido encontrei no Correio do Povo deste sábado, 31/01/2015, uma entrevista muito interessante feita pelo jornalista Juremir Machado ao historiador e professor universitário em Tel Aviv, Shlomo Sand. Achei bem interessante.

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