PÓS-VERDADE? A NOVA DIREITA E A CRISE DA RACIONALIDADE MODERNA

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Foto:Criança geopolítica observando o nascimento do homem novo“, Salvador Dali,1943.

 

Autor: Sandro Ari Andrade de Miranda, advogado, doutorando em sociologia.

Quando Immanuel Wallerstein assinalou a morte do capitalismo “como sistema”, em momento algum falou que os problemas do mundo estariam resolvidos. Na verdade, ele indicou a possibilidade de emergência de movimentos com corte ideológico de cunho fascista. Evidentemente, a herança marxista de Wallerstein impede que este pense o capitalismo apenas com um modelo econômico. O capitalismo é, também, uma forma de explicação do mundo, assentada em valores culturais e políticos, o que permitiu uma gramática própria, identificada por muitos como linguagem da “modernidade”. Como leciona Pierre Boudieu, os capitais não são apenas econômicos, mas culturais, sociais, simbólicos, em síntese, são relações sociais e discursivas de “poder”. Há muito mais por trás do capitalismo do que apenas um conflito entre capital e trabalho.

Outro agente importante que demonstra fadiga com a crise sistêmica do capitalismo é o estado nacional. Pensar o mundo exclusivamente por meta-teorias parece insuficiente quando a globalização, a tecnologia da informação, a crise ecológica e as mudanças climáticas expõem a complexidade do “sistema-mundo”. Olhá-lo, exclusivamente dentro de teorias fragmentárias, deterministas, é uma falha que limita os nossos horizontes analíticos. Apesar do esforço intelectual dos clássicos, a racionalidade capitalista nunca produziu uniformidade, ao contrário, ela fragmentou ainda mais a sociedade. A lógica discursiva da modernidade foi a de um mundo uniforme, onde todos eram seres individuais, cidadãos nacionais, dotados de razão, de consciência, de direitos e deveres fundamentais, com crenças e valores universais. Por trás deste universo de símbolos encontramos a xenofobia, o racismo, a desigualdade sexual, a homofobia e uma série de outros elementos que impulsionaram a derrocada discursiva da modernidade. Era impossível afirmar a existência de uma sociedade de cidadãos livres e iguais, quando uns tem acesso a tudo e outros a absolutamente nada. Enquanto alguns ficam protegidos na artificialidade da cidade oficial, turística e mundial, enquanto os demais afundam no sofrimento causado pela violência produzida pelo estado e por estruturas de poder paramilitares, paraestatais ou produzidas pela cultura da violência.

Quando o mundo não é mais explicado dentro do modelo de regras racionais dominante, restam três outros caminhos possíveis: a busca do universo do simbolismo irracional das religiões; a depressão, a descrença e o abandono dos espaços de diálogo formal e coletivo; e a resposta violenta, antissistema. Os três podem explicar o fenômeno do crescimento da extrema direita, com cunho político neofascista, no Brasil e no Mundo. Por mais incrível que pareça, por mais que a resposta se apresente apenas como irracional, os movimentos de extrema direita são uma reação do arquétipo do homem moderno (macho, branco, heterossexual e superior à natureza) ao seu fracasso. Este indivíduo moderno é tão real quando os dogmas que ele tenta se associar (terraplanismo e criacismo, por exemplo), pois só existe no universo metafísico de indivíduos frustrados com a perda do seu halo canônico. No vácuo de explicações uniformes, acabam aderindo as teorias mais absurdas para satisfazer o seu ego destroçado.

Como é possível apreender dos estudos psicanalíticos da Escola de Frankfurt, a sociedade capitalista do pós-guerra substituiu as satisfações “ídicas” pré-capitalistas pelo consumo. O homem do pós-guerra foi alijado dos seus próprios conflitos satisfazendo o ego apenas com o bem-estar material. Ocorre que o nivelamento material expôs os problemas que a sociedade europeizada, branca e colonial não queria ver. A imensa massa de pessoas socialmente excluídas pelo capitalismo na periferia passou a clamar por independência, as mulheres passaram a ocupar espaço na esfera pública em busca de igualdade e a sexualidade, aos poucos, começou a se libertar do controle do superego. De certa forma, Durkheim tinha razão ao alertar que as sociedades complexas libertam a individualidade, e seres individuais possuem identidade própria.

Outro aspecto importante da modernidade foi a reação da natureza à exploração que deu estabilidade ao bem-estar eurocêntrico. Sem a correta distribuição dos benefícios pelo capitalismo oligopolista, o centro começou a sofrer com a fuga do seu poder para a periferia. O crescimento, primeiro do Japão, depois da China, antigas colônias europeias, foi a “pá de cal” no orgulho dos machos, brancos ocidentais. As respostas estão aí e não são boas.

Pensar a emergência da extrema direita no ocidente exclusivamente dentro de fatores isolados e determinados é uma falha epistemológica. A prova mais evidente é a multiplicidade de conflitos deflagrados dentro de um esforço inútil de isolar os debates no estado-nação. Particularmente, também entendo conceitos como “pós-verdade” incompletos, afinal, não existe farsa maior do que a própria idealização do homem moderno. A reação irracional daqueles que aderem a farsa discursiva da mitologia direitista, é apresentada apenas por quem deseja viver dentro de uma bolha de ilusões fabricadas. Nenhuma frase é tão representativa da modernidade do que a apresentada por Marx e Engels no Manifesto do Partido Comunista: “tudo o que é sólido desmancha no ar”. Tudo desmanchou, inclusive a modernidade, o homem moderno e as suas explicações.

 

 

 

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